“A gente precisa ser mais do que uma história triste para contar”, diz Karen David

Criada no Capão Redondo, periferia de São Paulo, hoje morando em Portugal, brasileira viralizou com um poema sobre a ausência da figura paterna. Esse dia não é seu também conquistou o Got Talent.

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Com um poema sobre a ausência paterna, a paulistana do Capão Redondo conquista o júri do Got Talent Arquivo pessoal
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Se a pandemia foi um momento duro para o mundo todo, para a poeta e escritora brasileira Karen David, 30 anos, também serviu como descoberta de qual seria a sua profissão dali em diante. Moradora do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, ela dava expediente como garçonete quando começou o lockdown. Em casa, sem poder trabalhar e estudar, resolveu escrever, pôr no papel todas as suas emoções, principalmente a de não ter um pai presente. A dor da ausência da figura paterna foi transformada no poema Esse dia não é seu, que viralizou em 2021. E foi declamando seus versos, escritos na época da Covid-19, que ela conquistou no domingo (12/01) o júri do Got Talent em Portugal, atração exibida pela TV no país onde a poeta vive há um ano e cinco meses.

“Comecei a trabalhar como empregada de mesa, como chamam aqui, com 14 anos de idade em São Paulo. Cheguei a ser gerente de uma pizzaria. Mas, com o isolamento, sem ter como ganhar dinheiro, sem vida pessoal, sem nada, passei a escrever. No início, eram só desabafos. Contudo, quando compartilhei os textos nas redes sociais, vi que muita gente viveu as mesmas coisas”, conta Karen, que passou a comercializar a sua arte depois de Esse dia não é seu ter chegado a 3 milhões de views, com sete mil comentários, a maioria deles, perguntando como contratá-la.

Karen David viralizou na internet com sua poesia Arquivo pessoal
Não foi fácil para Karen David falar sobre a ausência do pai Arquivo pessoal
Karen David foi criada pela mãe na periferia de São Paulo Arquivo pessoal
Karen David começou a escrever poesias durante a pandemia da Covid-19 Arquivo pessoal
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Karen David viralizou na internet com sua poesia Arquivo pessoal

A primeira encomenda foi feita para um amigo dar de presente de aniversário à namorada. Karen cobrou R$ 2 (31 centavos de euro). “Mas ele me pagou R$ 10 (1,5 euro)”, comemora ela, que criou o “Correio Elegante Poético”, empreendimento que ela trouxe para Portugal. “Eu vivo disso hoje. Declamo e escrevo poesias.” Para o público brasileiro, o valor gira em torno de R$ 150 (23,4 euros). Em Portugal, custa aproximadamente 35 euros (R$ 224). Os textos podem ser recitados por telefone ou videochamada ou escritos e enviados por carta e pela internet. “Há muitas maneiras”, avisa.

Primeiro, o medo

Da periferia paulista para a Europa, e ainda brilhando no palco de uma emissora portuguesa, o que não falta para Karen é muita história. A escritora, que reside em Almada, na área metropolitana de Lisboa, resolveu participar do Got Talent sem pretensão alguma. “Já estava indo dormir quando fiz a inscrição, no final do ano passado, pela internet. Dois dias depois, recebi uma ligação me chamando para uma seletiva com poesias autorais. Ali, senti que houve uma conexão. Duas horas depois, já queriam falar comigo de novo, perguntando se eu podia declamar o que escrevi sobre o meu pai, que realmente é muito forte”, explica.

Selecionada para a segunda fase, ela admite que ficou com medo de tocar num assunto que acredita não ser tão comum por aqui. “No Brasil, acontece muito de a criança nascer e nem ser registrada pelo pai, por exemplo. A realidade portuguesa é outra. Acho que eles se sensibilizam com isso, mas não é uma pauta para eles”, avalia Karen. Mulher negra e representante da comunidade LGBTQIAP+, ela precisou ser ainda mais forte para sobreviver com a mãe, a auxiliar de cozinha Rosemery, 65, e com a irmã, Quesia, 31, à dura realidade do Capão Redondo. “Até porque se você não bate, apanha da vida”, afirma.

Morando em Portugal, Karen David sabe que a vida de imigrante não é fácil Arquivo pessoal
Se vencer o Got Talent, Karen David quer retornar para o Brasil Arquivo pessoal
Karen David se prepara para lançar o segundo livro Arquivo pessoal
Karen David mora em Almada, região metropolitana de Lisboa Arquivo pessoal
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Morando em Portugal, Karen David sabe que a vida de imigrante não é fácil Arquivo pessoal

Karen, que jogou futebol dos 10 aos 19 anos, também sentia falta de ter o pai para apoiá-la durante os treinos. “Eu me perguntava: por que ele não está torcendo por mim na arquibancada? No início, até achava que a culpa era minha”, diz a brasileira, que, desde cedo, gostava de anotar os percalços do seu dia a dia. “Não tinha dinheiro para terapia”, brinca. Mas foi tocando nessa ferida que Karen está na disputa do Got Talent. “Sei que é clichê, mas já me vejo como vencedora. A gente precisa ser mais do que uma história triste para contar”.

Este ano, ela ainda pretende lançar seu segundo livro e planeja montar um espetáculo de poesias em Portugal. Porém, se ganhar o programa (o prêmio é de 25 mil euros, ou R$ 160 mil), vai voltar para São Paulo. Karen, que atravessou o oceano para conhecer a namorada de Minas Gerais, confessa que viver em outro país não é tarefa fácil. “No começo, foi caótico, principalmente para quem vem de São Paulo, cidade que nunca dorme”, frisa. “Precisei aceitar esse jeito menos acelerado do português.” A seguir, o poema Esse dia não é seu, de Karen David.

"Quando eu morrer quero que meu testamento seja lido na presença do meu pai!

Não toquem em nada

Deixem tudo pra ele

Tudo que eu conquistei

Tudo que eu me tornei

Deixo pra você pai,

Minha medalha de campeã estadual de futebol feminino, já que você nunca assistiu um jogo meu.

Os textos que escrevi e com eles toquei centenas de corações, já que você nunca me viu declamar uma só poesia!

O livro de receitas que guardo na segunda gaveta do meu armário, foi com ele que fiz minha primeira torta de frango.

O CD com o vídeo da primeira vez que saltei de paraquedas. Eu morro de medo de altura, mas eu precisava provar a mim mesma que eu era corajosa!

Deixo pra você tudo o que fez de mim o que eu sou, sendo assim te deixo um pequeno espelhinho que guardo sobre a minha escrivaninha para que você olhe e nunca se esqueça

Que a sua ausência me fez mais seca, a sua ausência me fez mais forte e corajosa,

A sua ausência me forçou a me defender sozinha de homens covardes igual a você."

Sobre tudo a sua ausência me fez entender que a culpa nunca foi minha pelo seu lugar sempre vago na plateia, eu até tentei sentir a sua falta, mas a minha mãe. ela foi tão foda. que ocupou o seu e ocupou o dela.

Senta não vai embora ainda

Eu vou te contar uma história:

Uma criança de 7 anos agarrada na irmã mais velha de 8 rezando pra água não subir mais que a privada, e subiu,

Duas crianças encurraladas

Não foi brincadeira 'que a enchente não leve minha cama, já que a chuva arrancou as telhas', você não estava lá o Zé, pra ver sua filha com 7 anos tendo que virar mulher!

Eu não queria que esse episódio tivesse sido evitado, mas que 'dahora' se tivesse todo mundo junto passando os perrengues da vida lado a lado!

Dê a César o que é de César... Dê a Deus o que é de Deus... seus filhos por baladas, mulheres e pó!

Seja justo pelo menos uma vez e fica em casa, esse dia não é seu!

Que fique claro. Isso não é um discurso de ódio, está mais para um discurso de dó, sinto muito por todos os pais que trocaram seus filhos por baladas, mulheres e pó!​

Não toquem em nada e deixem tudo para ele, para que ele não esqueça nem por um só dia que aqui jaz um pedaço dele, que dele nunca teve nada!"