Pausa: felicidade é política
Alguém já se deu conta de outras pessoas lhe flagrar sorrindo sozinho, durante uma experiência poética, sem qualquer aparente motivo para isso? Ou em estado de espanto? Isso tem nome: liberdade.
Antes de entrar em uma sala de espetáculo, procuro um café ou um lugar agradável para tomar um copo de vinho. Esse é um ritual que nem sempre consigo realizar, mas sigo esforçado em mantê-lo. Por vezes, o dia me supera. Mas, quando o faço, após a bebida chegar, levo-me pelo instante a outra qualidade de apreciação e das sensações. É quando, também de forma constante, acabo por pegar um caderno e uma caneta e me entrego a alguma ideia, reflexão, rascunho de uma proposta, uma vontade de pensar ou de criar, seja sobre o que for. Preciso desse tempo. Da pausa. Mesmo que por vinte, trinta minutos. E ela sempre se comprova eficiente.
Escrever em um café é escrever em convivência, em ação. Parte das ideias são minhas, outras são provocadas por falas desconexas de alguém, por um gesto que me surpreende com seus motivos desconhecidos, por cenas que se abrem e parecem fazer com que todo o resto esteja ali apenas para acontecer exatamente como acontece. Escrevo, e isso é mesmo comum, com pessoas ao lado, muitas vezes se esforçando para ler. Há algumas semanas, na espera de uma peça, no canto do saguão do teatro, um homem me interrompeu para dizer que minha letra e organização no caderno eram incríveis e tinham certa beleza. Agradeci, e voltei ao caderno.
Por um instante, pensei: o que o deixou tão curioso no fato de alguém escrever, ali, silenciosamente, que o levou a abandonar o mundo virtual? Por alguns segundos, houve uma espécie de encantamento inesperado de sua atenção, e ele não apenas o aceitou surgir, como precisou compartilhá-lo para realizar sua manifestação.
No entanto, os cafés e os espaços para convivência reais somem. Os espaços culturais, que não os possuem, são muitos. Ou foram transformados em ambientes não ocasionais, não transitáveis e não livremente públicos. Essa condição mercantil de exploração do lucro de todos os recantos de um espaço cultural (afinal, um café tem seus gastos), ao ser terceirizado (pois as salas não possuem recursos próprios para mantê-los), normalizou a ausência.
Sem os cafés ou algo assim, resta chegar na hora, correr para dentro das salas e, depois, o quanto antes, sumir, de volta para casa. Sem conversas laterais aleatórias, sorrisos a quem se conhece das filas, perguntas sobre o que será assistido. O que se perde, então, são aspectos fundamentais à experiência cultural: o tempo livre ao pensamento, a desaceleração do tempo, o ócio criativo, a desconexão por alguns instantes da lógica de produtividade e eficiência, o encontro, o reencantamento da vida comum, o compartilhamento das expectativas.
Passamos a aplicar aos eventos culturais os mesmos princípios denominados por capitalismo cognitivo. Parecemos livres, afinal estamos supostamente fora do trabalho, em pleno lazer. Entretanto, essa falsa sensação de liberdade é atropelada pela falta de contato entre as pessoas, de viver coletivamente um contexto singular, enquanto somos intensamente explorados pela dominação de nossa cognição.
O tempo da descoberta de uma experiência compartilhada com desconhecidos sucumbe ao que lhe importa: esse momento, agora, também serve para ser sugado e capitalizado pelas novas tecnologias — como uma terceira mão que nos obriga a respeitar seus anseios. Até mesmo o mínimo momento de espera tornou-se mercadoria. E, aos proprietários desses lucros, não interessam os cafés, os encontros, as conversas.
Perdemos com isso, ao fim, algo ainda mais profundo: a disposição pela utopia, que só ocorrerá se se manifestar na forma de sentimento e vontade pelo prazer em desacelerar. É nesse outro estado, diante de uma xícara de café, que a contemplação me provoca outra qualidade de viver o presente, e é ao duvidar do presente em que me percebo estar, que me entrego à imaginação de novos modos de ser e de existir. Não há nada de especial em mim. Não sou o único. Os cafés raramente estão vazios. É quando entendo a utopia ser uma espécie de novo acordo silencioso contra a hegemonia do capitalismo cognitivo.
Por isso, no contemporâneo, a utopia requer ser compreendida por outra formulação: afetiva, pois nos notamos sem precisar traduzir o que significa ali estarmos; estética, quando representamos uma imagem diferente do excesso dos demais. Arrisco dizer, a nova utopia agenciar menos a desilusão, e mais a desprogramação da atenção, substituindo-a pelo encantamento de novos regimes poéticos.
Entrar em uma sala de espetáculo após andar pelas ruas lendo um livro, enquanto esbarro nas pessoas que me olham como sendo alguém bastante estranho, após uma pausa para um café, após escrever meus pensamentos, acompanhado pelas vozes de outras pessoas, é radicalmente diferente de apenas chegar, sentar-se, assistir e sair. Tornou-se um hábito de rebelião. Uma espécie de anarquia narrativa, pela qual recuso destruir a experiência de ir a um teatro, um show, uma exposição, um concerto, uma palestra... Pois a experiência não é apenas o acontecimento em si, mas a soma de tudo aquilo que me prepara para ele e me recria ao terminá-lo.
Ou mesmo quando leio um texto no jornal. Como vocês, agora. Imagino-os com suas xícaras de café, nas caminhadas rumo a algum lugar, nas pausas do trabalho, nas esperas que se abrem para as atenções poderem ser encantadas por outros afetos. Por vezes duros, é verdade. Mas sempre com a tentativa de, ao identificar os contornos difusos do presente e do amanhã, desvelar dimensões críticas e poéticas de uma nova qualidade do sensível.
Com a arte, isso ocorre ainda mais. Podemos fechar os olhos e nos deixarmos ir por sensações e imaginações. Alguém já se deu conta de outras pessoas lhe flagrar sorrindo sozinho, durante uma experiência poética, sem qualquer aparente motivo para isso? Ou em estado de espanto? Isso tem nome: liberdade. Trata-se de um estado de algo acontecer entre as pessoas, e não apenas dentro de si, possível por dividir com o outro o mesmo instante do mundo. Ou seja, uma experiência aberta, em relação, validada pelo reconhecimento da coexistência. Essa liberdade, essa disposição ao acontecimento desfaz a ilusão que temos sobre o controle de nós mesmos.
Significa, então, alcançar, pelos gestos comuns, outros modos de estarmos próximos e, com isso reaprendermos maneiras diferentes de viver — sensíveis, críticas —, enquanto elaboramos uma qualidade de utopia cotidiana, em que os afetos se somam para a construção de uma liberdade real. A felicidade é política.
Há sempre o fim do café. O instante em que o termino. Por vezes, bem controlado, ocorre no momento certo de seguir para a sala de espetáculo. Outras vezes, o último gole desce e queima a boca, é sua resposta à minha distração. Já perdi espetáculos assim, distraído entre imagens, envolvido pela escrita, entregue às conversas, deslocado por um encantamento tão verdadeiro que só foi interrompido ao ouvir o som da sala se fechando ao meu lado. Então retorno, por vezes revoltado comigo mesmo, ou apenas me divirto. Pego meu caderno, peço uma nova xícara e me releio. E me reencanto ao perceber onde estava antes. E ali sigo em um estado entre o utópico e o delírio, pelo qual vou ao próximo espetáculo.
Sugestões de leituras:
> Novo Iluminismo Radical, de Marina Garcés. Orfeu Negro, 2023.
> Art and Enchantment — How Wonder Works, de Patrick Curry. Routledge, 2023
> L'expérience de La Liberté, de Jean-Luc Nancy. Galilée, 1988