“É estranho para mim ver novela só com pessoas brancas”, diz autora de Volta Por Cima
A autora, que deixou o humor para se dedicar às telenovelas, reproduz o ambiente em que viveu na Zona Norte do Rio, com os conflitos familiares e a vivência em comunidade.
Nascida e criada na Tijuca, Claudia Souto, autora de Volta Por Cima, usou as memórias da época em que viveu no bairro da Zona Norte do Rio para escrever sua terceira novela. O subúrbio de Ramos, terra de sua mãe, também influenciou a roteirista de 59 anos na criação da história das 19h da TV Globo, que estreou no início deste mês em Portugal.
Ela compara sua família com a da protagonista Madalena (Jéssica Ellen), que mora na fictícia Vila Cambucá. “Aqueles cafés de fim de tarde, com todo mundo conversando. As brigas da sobrinha com o tio, o parente que passa a perna no outro. Tem muito da minha família ali”, conta Claudia, de seu apartamento na Lagoa, na Zona Sul carioca, ao PÚBLICO Brasil.
A novela é apontada pela crítica brasileira como um folhetim bem-sucedido tanto no ibope quanto na representatividade de seus personagens — há um núcleo asiático, por exemplo, que passa longe do caricato habitual e o enredo ainda aborda o fenômeno do k-drama (novelas coreanas).
Claudia conta que não foi algo que surgiu de pesquisa e frisa que sempre conviveu com a diversidade. “Espero que um dia esse assunto não seja mais uma questão, pelo menos no Brasil. Isso sempre fez parte da minha vida. Eu cursei o primário na escola pública. O estranho, para mim, é ver novela só com pessoas brancas", critica.
Formada no humor
Aos 15 anos, com vontade de ser atriz, ela também vivenciou a pluralidade nas aulas de Teatro Amador do SESC da Tijuca. “O grupo era formado por mim, uma menina de classe média; pelo vendedor da loja de tecidos, que saía do trabalho e ia direto para lá; pelo cara que era gay; e pela outra aluna que vinha de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense). A vida no teatro é muito de inclusão”, garante.
A autora também conquistou o telespectador da novela, que termina neste sábado (26/04), no Brasil, ao escalar veteranos para a sua obra, como Betty Faria, Lucinha Lins e Iara Jamra. “O público sente falta dessas pessoas. Eu sinto falta dessas pessoas. E me senti honrada em ter um elenco como esse", comemora ela, que acrescenta: "É bacana saber que as pessoas gostaram, mas, ao mesmo tempo, é triste que isso seja apontado como: ‘olha quem ela trouxe para a novela’. Deveria ser algo normal".
Formada na renomada Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), Claudia chegou a fazer parte de um grupo italiano, o Teatro Potlach, de Fara in Sabina, na Itália, onde fez estágio por seis meses. Mas, nos anos de 1990, deu início a sua trajetória na TV ao se tornar uma das redatoras do Casseta & Planeta, Urgente!, exibido na Globo de 1992 a 2010. “Quando o Cláudio Manoel (um dos humoristas do programa) leu meus textos, ele falou: ‘você tem a nossa piada’. Eu me senti condecorada, porque aquela menina tijucana tinha a piada do Casseta & Planeta. Também não era natural uma mulher no humor”, relembra. “Eu inauguro uma nova geração. O terreno do humor era muito masculino”, avalia.
Claudia também fez parte da equipe de Os Trapalhões, Sai de Baixo, Zorra Total e, entre outros produtos, de Os Caras de Pau, criado por ela, Márcio Trigo e Marcius Melhem. Em 2001, porém, após colaborar com o infantil Bambuluá, ela quis entrar para o mundo das telenovelas.
“Estava na linha de shows desde 1992, já tinha feito programa de auditório, reality show, infantil, humor, série”, enumera a escritora. “Mas eu venho do teatro. A dramaturgia estava em mim. Mesmo assim, só consegui ser colaboradora em 2007, quando o Walcyr (Carrasco) me chamou para trabalhar com ele", relata.
Noveleira desde criança
Com Walcyr, um dos autores mais prestigiados da Globo, Claudia fez Sete Pecados, Caras e Bocas e Morde & Assopra, até assinar sua primeira trama solo, Pega Pega. A segunda foi Cara e Coragem, em 2022. Todas foram para o ar na faixa das 19h. “Como eu venho do humor, esse horário é sempre mais confortável para mim, é onde posso brincar mais”, admite. “E eu acho o texto de humor o mais difícil de escrever", explica.
Claudia admite que é noveleira desde pequena. “Eu me lembro que, quando meu pai chegava do trabalho, ele sempre trazia pão e queijo. A gente lanchava assistindo à novela A Moreninha. À noite, tentava ver Gabriela, mas era meio proibido, porque eu era criança", comenta. "Ou seja, cresci acompanhando grandes autores como Dias Gomes, Janete Clair, Gilberto Braga. Mas, quando entrei para a TV, achei que novela era algo muito distante de eu conseguir fazer", diz.
A autora de Volta Por Cima não só conseguiu como faz questão de homenagear o principal responsável pela sua conquista profissional: o pai, Celso, bancário que morreu de câncer quando ela tinha 19 anos. “Ele me ajudou a encontrar meu propósito, como o Lindomar (MV Bill) fez com a Madalena", destaca, relembrando o dia que definiu o seu futuro.
“Como não tinha passado no vestibular, meu pai me perguntou se ele ficaria pagando cursinho enquanto eu fazia teatro e se era o que eu queria da vida. Quando respondi que sim, ele disse: ‘então, você sai do cursinho e vai fazer a melhor escola de teatro que tiver’. Ele não viu eu me formar, morreu antes, mas, até hoje, eu agradeço muito a ele", recorda. O público também.