Assinar documentos sem ler pode se transformar num tormento de dívidas

É comum entre pessoas casadas uma delas assinar papéis sem ler e sem questionar, por excesso de confiança. Mas esse que seria um ato de amor pode custar — e muito — caro.

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Assinar documentos sem ler pode resultar em dívidas com valores impagáveis. Todo cuidado é pouco Leonhard Foeger/ Reuters
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Traição, por si só, é um ato difícil de perdoar, mas quando vem acompanhada de dívidas impagáveis, o perdão se torna quase impossível. “Estou nesta situação, fui apunhalada várias vezes pelas costas”, diz a cozinheira Filomena Barcelos de Oliveira. “Tudo porque entreguei a minha vida nas mãos do homem que eu amava, meu marido, com o qual tive um filho”, diz, com os olhos marejados. Ela descobriu que, enquanto estava casada, o homem que ela venerava fez uma dívida de 40 mil euros (R$ 240 mil) num banco em nome dela, dinheiro com o qual ele comprou um carro também em nome dela e ainda deixou sem pagamento mais de 11 mil euros (R$ 66 mil) em taxas e impostos que, agora, a Autoridade Tributária de Portugal está lhe cobrando.

Aos 50 anos, Filomena diz se arrepender do dia em que disse sim ao pedido de casamento feito pelo agora ex-marido. “Naquele momento, tudo era lindo, fazíamos vários planos juntos. Um deles, o de morar em Portugal. Ele queria muito, e eu acabei concordando”, conta. Em 2006, o jovem casal cruzou o Atlântico. Filomena estava convencida de que teria toda a proteção que precisava. Além de estar com o marido, uma amiga de infância havia aceitado abrigar o casal pelo tempo que fosse preciso na casa dela. “Estava tudo indo muito bem”, recorda”, Filomena. Tão bem que, rapidamente, ela foi trabalhar em uma loja de sapatos e o marido, no mercado de automóveis. Ele tinha fixação por carros.

Nesse clima de paixão e descobertas na nova vida, Filomena não se preocupava em assinar, sem ler, todos os papéis que o marido lhe entregava. “Tinha a certeza de que ele estava cuidando de mim, que só queria o nosso bem. Essa confiança era tamanha, que, todos os meses, quando recebia meu salário, entregava para ele. Ficava praticamente sem nada, era totalmente dependente daquele homem”, afirma. O que ela não imaginava era que aqueles papéis lhe trariam tanta dor de cabeça. “Hoje, estou com parte do meu salário bloqueado pela Autoridade Tributária, não posso comprar nada financiado porque estou com o nome sujo na praça e vivo num quarto alugado com meu filho de 17 anos, que nasceu em Portugal”, frisa. "Tenho a dívida, mas não sei onde o tal carro foi parar", emenda.

Como Filomena, muitas pessoas, mulheres e homens, acabam confiando demais em seus parceiros. Assinam documentos sem fazer qualquer questionamento, como se não houvesse a possibilidade de estarem sendo traídos. “Esse tipo de situação é mais comum do que se imagina”, diz o advogado Fábio Pimentel, do escritório CPPV Law. “As pessoas acreditam que o amor está acima de tudo, o que não é verdade quando se trata de proteger o próprio nome. Separações, divórcios, são comuns em relações de casais, por mais que se acredite que elas serão eternas. O mínimo de questionamento é fundamental para se proteger. Não se assina folha em branco nem documento não lido e compreendido”, afirma.

Confie desconfiando

Pimentel ressalta que, mesmo que o caso vá parar na Justiça, que a pessoa que alega ter sido traída diga que foi passada para trás por confiar demais no marido ou na mulher, dificilmente os julgadores darão a ela ganho de causa. “No máximo, a Justiça dividirá o ônus pelos dois, bloqueando, por exemplo, o patrimônio do alegado traidor”, destaca. Ela complementa que, no caso de bancos e da Autoridade Tributária — e isso vale para a Receita Federal no Brasil —, não importa se a pessoa foi ludibriada ou não. O que prevalece é o documento assinado por ela, com confissão de dívida. Não será isenta de responsabilidade”, detalha.

Na avaliação de Pimentel, que já teve casos semelhantes sob sua responsabilidade, não há amor que justifique uma pessoa assinar um documento sem saber do que se trata. “Na dúvida, pergunte para alguém próximo o que deve fazer, questione quem está pedindo a assinatura, leia linha por linha, porque as entrelinhas podem esconder detalhes muito sutis, que são verdadeiras armadilhas”, afirma. Como diz um provérbio popular, “o diabo mora nos detalhes”. Para ele, a regra é clara: “Confie desconfiando quando se estiver em jogo a assinatura de documentos. Isso vale para tudo, entre marido e mulher, se vai ser fiador de alguém, entre amigos”, reforça.

A advogada Catarina Zuccaro recorre a um jogo de palavras para descrever possíveis golpes financeiros entre pessoas casadas: “Quanto o casal está junto, é meu bem, quando não está mais junto, são meus bens”. Para ela, assinar qualquer papel sem ler é problema futuro na certa. “Não há nada demais em perguntar o que se está assinando, ter dúvidas. É natural, é o instinto de proteção”, diz. Ela ressalta que, no caso de Filomena, o amor falou mais alto e que ela não é a única vítima desse tipo de golpe. “Temos visto vários casos como esse em tribunais.”

Catarina ressalta que, especificamente em relação à dívida de Filomena com a Autoridade Tributária, o bloqueio de recursos só pode ser feito sobre o que exceder o salário mínimo, atualmente de 870 euros (R$ 5.200). “É o que está acontecendo”, diz a cozinheira, que, depois de muito insistir, conseguiu reduzir a dívida tributária de 11 mil euros para pouco mais de 3 mil. “Ainda assim, é um valor pesado para mim”, assinala ela, que, depois da separação, retornou para o Brasil, onde morou por um tempo. “Voltei para Portugal há um ano e meio, mas tem sido muito difícil encarar todos os problemas deixados pelo meu ex-marido, que está no Brasil e não quer nem saber sobre o que fez”, lamenta.