O jeitinho brasileiro e o desenrasca-te português e esse dom de nos virarmos

Tanto o “desenrasca-te” quanto o “jeitinho” traduzem-se pela capacidade de se adaptar a situações inesperadas, solucionar problemas e lidar com imprevistos de modo criativo, usando redes de contatos.

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Quando criança, gostava de visitar a casa de meus avós. Lá, se me acontecia algum problema, ia eu falar com eles e tudo se resolvia mais rápido. Mesmo o que não tinha solução. Meu avô fascinava-me com uma resposta quase sempre a mesma: “Pois, agora, desenrasca-te!”. Não raro seguiam-se palavras de consolo e, muitas vezes, uma ajuda prática que, de fato, solucionava. Ou eu acreditava que sim. Para esta criança criada no Brasil, o desenrascar-se que só meu avô conhecia era algo sempre bom.

A consciência do jeitinho brasileiro apareceu depois. Vivida no cotidiano em múltiplas formas, muitas vezes com conotação negativa. Levei tempo para ver ‘jeitinho’ e ‘desenrasca-te’ como variedades de uma mesma planta que precisou adaptar-se a realidades diferentes. Ambas surgem de um povo que busca caminhos para lidar com uma elite burocrática e ineficiente.

Em um contexto de pobreza e recursos limitados, o povo português desenvolveu uma cultura de inventividade e adaptação diante de desafios. Ah, essa “arraia miúda” de que já nos fala Fernão Lopes e que desponta, para além dos desejos de manipulação, com as mais importantes contribuições para a nossa identidade! Precisam-se soluções eficazes, mesmo que não sejam as mais ortodoxas ou formais quando os caminhos mais usuais para resolver esses problemas apresentam-se mais tortuosos e demorados do que o adequado. Então, dá-se um jeito!

Essa é a semente do que viria a ser, cá e lá, um jeito próprio de lidar com os problemas. Tanto o “desenrasca-te” quanto o “jeitinho” traduzem-se pela capacidade de se adaptar a situações inesperadas, solucionar problemas e lidar com imprevistos de modo criativo em diferentes contextos, usando redes de contatos e relações interpessoais.

O importante é contornar obstáculos e encontrar alternativas, sem desanimar. A melancolia intrínseca à língua portuguesa, a qual faz com que o fado e o samba tenham sempre, cada um a seu modo, um travo de tristeza, esconde dentro de si uma centelha de esperança e forte resiliência: “desesperar, jamais!”, diria Ivan Lins.

As desigualdades sociais, historicamente muito fortes, aqui e lá, e a constante desconfiança em um Estado burocrático e dado a ações moralmente ambíguas tornam esse modo de lidar com a realidade mais informal e efetivo e, ao mesmo tempo, resultado de uma inteligência prática e de certa falta de caráter. Aproxima-nos do pícaro medieval, depois fortalecido na literatura dos séculos XVI e XVII, quando damo-nos conta de que a descoberta do ouro da América enriqueceria somente a uns poucos, mas geraria problemas para todos.

Chegado ao solo do que viria a ser o Brasil, esse jeito prático de lidar com os problemas enfrentou questões históricas próprias, como a miscigenação cultural entre os povos originários, os europeus e os africanos e a escravização. Atualmente, o jeitinho brasileiro sofre de má fama. Deixa em evidência o seu lado negativo, algo corrupto e aproveitador da boa vontade dos outros. A transgressão sufoca os elementos positivos desta marca própria de ser brasileiro. O diminutivo “-inho” associado ao pouco valor desse modo de estar no mundo. Mas o próprio “jeitinho” deu o seu jeito e se reinventou.

Escuto muito hoje o “se vira” e o “dá um jeito”. Essas duas expressões buscam resgatar moralmente o nosso jeitinho brasileiro. O brasileiro que se vira e dá um jeito de sair de um modo de vida que o oprime e vai para a Europa tentar a vida vivencia o mesmo desenrascar-se que levou meu avô a cruzar o Atlântico e abandonar a fome e a miséria próprias do governo salazarista e vir para o Brasil, a terra prometida. Aqui e lá, temos uma capacidade estratégica e engenhosa que partilhamos e que se manifesta nas nossas realidades culturais.

Em Portugal, as melhoras sociais dos últimos anos encarregaram-se de regenerar o “desenrasca-te”, associando-o mais ao caráter prático de ser português e mitigando o seu lado, por vezes, tão pouco ético como o do “jeitinho”. Não o fez desaparecer, é certo, mas mitigou-o.

Penso que temos de nos orgulharmos desse nosso filho em comum, seja como o chamemos. Esses conceitos revelam uma história compartilhada de superação de desafios, que passam pelas dificuldades da colonização que mais trouxe pobreza ao povo do que benefícios. Evidenciam a nossa capacidade de encontrar soluções flexíveis e informais, apesar dos mais variados obstáculos e de nossa força moral em não desistir.

Claro, há as questões éticas envolvidas. A culpa não é do jeitinho ou do desenrascar-se, mas de quem o faz acontecer. Ele sempre terá o valor ético de quem age. A língua reinventa-se conforme as histórias acontecem. São como dois lados de uma mesma moeda cultural, modelados por narrativas históricas tão próximas como distantes, mas que compartilham uma base comum de inventividade, resiliência e um modo próprio de navegar pelas complexidades da vida.