Brasileiros abrem restaurantes de Norte a Sul de Portugal numa mistura de sabores

Empreendedores mantêm as tradições da gastronomia portuguesa, mas dão toques de brasilidade que surpreendem e atraem a clientela. Mas há obstáculos no caminho.

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Vagner Silva abriu, há oito meses, com dois sócios, o restaurante Ameathology, no Areeiro, Lisboa Arquivo pessoal
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O paulistano Vagner Silva já distribuiu panfletos pelas ruas de Lisboa e trabalhou como claque (pessoa que incentiva a plateia a bater palmas) em programas de auditório na TV portuguesa. Há 19 anos em solo lusitano, ele fez de tudo um pouco para se manter. Mas o grande desafio aconteceu há oito meses, quando abriu o restaurante Ameathology, no Areeiro. E sem medo de arriscar. No cardápio, comida 100% nacional é o que não falta. “Sabemos que o português é exigente, mas nossos pratos têm agradado à clientela, que já frequentava o lugar”, afirma ele, que deu uma mexida no nome original do estabelecimento. "Botei 'ame' para que amem a nossa comida, amem o nosso espaço", diz.

Ex-professor de literatura, Vagner entrou na empreitada com o sul-mato-grossense Volnei Silva, e o cearense Ciro Silva, chef da casa. Apesar de terem o mesmo sobrenome, ninguém é parente. “Somos só amigos mesmo”, afirma Vagner, que também é proprietário há cinco anos de um alojamento local (AL), em Arroios. O empreendedor, que não gosta de revelar a idade, engrossa um time de brasileiros que cada dia mais investe na restauração, como o ramo é chamado em Portugal.

Outro exemplo é o de Camila Martins, 38. Atualmente, a carioca está à frente dos wines bares bistrô Magnólia e Calma, ambos na Misericórdia, Lisboa. “Eu tinha um sonho muito distante de abrir um café. Mas, realmente, isso só se concretizou aqui. Tem uma certa burocracia, mas não existe o impasse que eu encontrei no Brasil. Aqui as pessoas querem ajudar em vez de atrapalhar”, compara. E o empurrão que ela precisava aconteceu em 2020, quando conheceu seu sócio, o belga Yves Callewaert, 48, que mora em território lisboeta há 15 anos.

“Ele tinha uma produtora, era da área da publicidade, mas veio a pandemia e as coisas mudaram. Um dia, ele me perguntou se eu queria ser sócia dele num café. Nem acreditei. Logo começamos a procurar um ponto, que, por coincidência, era onde nós costumávamos beber um cafezinho”, conta a empresária.

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A brasileira Camila Martins comanda os restaurantes Magnólia e Calma, ambos em Lisboa Mathias Vanduren

Negócios e sabores

A dupla começou a fazer obras no Magnólia, que ganhou esse nome por ficar na Praça das Flores, em maio de 2022. A inauguração, três meses depois, fez tanto sucesso, que eles investiram em mais um negócio, o Calma, aberto em dezembro do ano passado, no tranquilo, daí o título, Largo Agostinho da Silva. “Começamos a ter uma fila de espera muito grande no Magnólia”, orgulha-se Camila. “Consegui o que queria, mas foi uma luta. Já começa que vida de imigrante não é fácil, principalmente até conseguir todos os documentos”, admite.

A empresária cruzou o Atlântico em 2018, trazendo na bagagem bastante experiência no mercado. No Rio de Janeiro, trabalhou com o chef francês Damien Montecer, no Hotel Santa Teresa, na boulangerie Guerin, do também francês Dominique Guerin, e no Hotel Fasano. “Também fazia ceias de Natal, almoços de Páscoa e jantares de grupos. Nunca trabalhei com outra coisa na minha vida”, comenta.

Também em sociedade com mais dois amigos, a carioca Isadora Brito, 35, e o paulistano Rafael Fortunato, 42, o ex-professor de história Bruno Freitas Oliveira, 41, abriu o Ideia de Jerico, há dois meses, em Vila Nova de Gaia. Na hora de batizar a loja, o trio quis fazer uma brincadeira com expressões que são ouvidas em sua terra natal. “Não somos um restaurante brasileiro, mas fizemos uma lista com várias expressões divertidas do país”, explica ele, que serve francesinha, comida italiana e árabe, entre outras delícias.

Em 2011, Bruno já tinha administrado um restaurante em família, em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, onde vivia. Mas não deu certo. “Misturamos problemas pessoais com os do trabalho”, lamenta. Vagner, do Ameathology, também experimentou o dissabor de encerrar as portas, na Penha de França, Lisboa, em 2023. “Ali não era o nosso público”, pondera ele, que, atualmente, além de ter bacalhau no menu, serve novidades como frango com pasta de amendoim e, como sobremesa, musse de goiabada. “Os portugueses gostam de provar outros sabores, são curiosos”, garante.

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O ex-professor de história Bruno Freitas Oliveira abriu o restaurante Ideia de Jerico, há dois meses, em Vila Nova de Gaia, em sociedade com a carioca Isadora Brito e o paulistano Rafael Fortunato Arquivo pessoal

Burocracia pesa

Diferentemente de Camila, do Magnólia e do Calma, Bruno acha a burocracia de Portugal pior que a do Brasil. “Foi bastante complicado, mas já passamos por essa parte”, define. E aponta outra questão a ser levada em conta para quem quer investir além-mar: “É mais difícil o fato de a economia daqui não ser tão dinâmica quanto a do Brasil. Nunca tinha vivido num lugar onde a economia é sazonal. Em São Paulo, você negocia qualquer coisa em qualquer época do ano. Aqui, você tem o problema de vender mais na primavera e no verão do que no outono e no inverno”, relata.

Com o restaurante, o ex-professor também tenta faturar mais do que o salário mínimo de 870 euros (R$ 5.220), valor que geralmente é pago a garçons e cozinheiros. “Esse mercado não é fácil, mas acho que, se você faz um trabalho com constância e padronização, consegue sobreviver. Se eu tiver o meu próprio negócio, tiro, pelo menos, o salário mínimo. Então, acho que vale mais a pena investir em algo meu, mesmo que seja pequeno. Foi o cálculo que fiz, e, por enquanto, estou tendo razão”, assegura Bruno.

Vivendo no Norte do país desde 2019, ele quer atrair a clientela local. “Quero ser uma alternativa aos que trabalham em função do turismo, porque os preços que eles praticam são muito altos para quem vive aqui. Nós fizemos algo acessível, temos pratos que, no Centro do Porto, você paga mais que o dobro”, garante.

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A santista Aryelle Bastos está à frente da The Happiest Coffee: de empregada a dona do próprio negócio Arquivo pessoal

De empregada a dona

De Santos, São Paulo, Aryelle Bastos, 38, também tinha o desejo de ter um estabelecimento para chamar de seu. Assim como Bruno, do Ideia de Jerico, que adquiriu experiência suando a camisa em restaurantes e bares locais, ela começou como empregada de uma cafeteria. Porém, em fevereiro do ano passado, a santista inaugurou a The Happiest Coffee — Specialty Coffee, no bairro Azul, perto do El Corte Inglès. “Mostro a qualidade de um café de verdade, porque, apesar de o português ter muito esse hábito, ele toma um café ruim”, avalia ela, que se formou em barista em Portugal.

Aryelle trabalha com produtos importados da Serra do Caparaó (na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais), da Etiópia e do Quênia. “Só uso grãos selecionados e a torrefação é diferenciada. A pessoa não fica com aquele gosto amargo na boca. Eu não gostava de café por causa disso”, cita a empresária, que prioriza os pequenos produtores. “São famílias que têm amor ao café. Quando a gente ama o que faz, entrega sempre o melhor”, acredita. Em Cascais, ela também é dona de uma bike coffee. “Vi uma na Bélgica e resolvi trazer a ideia para cá”, entrega.

No começo, a exemplo dos outros empreendedores, ela encarou uma série de adversidades para se estabelecer profissionalmente no país que escolheu para morar há três anos. “Consegui realizar o meu sonho sendo imigrante, porque, se você não for aquele imigrante milionário, vai encontrar muitas barreiras. Até no Brasil nós enfrentamos, imagine em outro lugar”, avisa Aryelle, que planeja expandir seu café para o Porto.