“Nunca foi tão importante sair e sentir a natureza”, afirma Margarida Caldeira

Arquiteta e urbanista fala sobre desafios de viver em uma sociedade desigual e com urbanização desenfreada. Responsável pela Casa Figueira, em Campinas, ela participa do 1º Encontro das Cidades.

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A arquiteta e urbanista portuguesa Margarida Caldeira defende espaços verdes nas cidades e alerta para os desafios de oferecer habitação num mundo cada vez mais urbano Arquivo pessoal
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Uma das principais arquitetas contemporâneas portuguesas, Margarida Caldeira, 62 anos, se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Urban Learning Institute (ULI) — organização sem fins lucrativos dedicada à pesquisa, educação e promoção de boas práticas no uso do solo e no desenvolvimento imobiliário — em Portugal, no ano passado.

A renomada urbanista, cofundadora da Broadway Malyan, empresa inglesa de arquitetura, urbanismo e design, desde 1996, ainda liderou a abertura do estúdio em São Paulo, em 2010. A Broadway Malyan é a responsável pela Casa Figueira, em Campinas, um bairro com um milhão de metros quadrados, cerca de 50 mil habitantes e integrado ao maior shopping do grupo Iguatemi.

Em uma parceria entre o Iguatemi e a FEAC (Fundação das Entidades Assistenciais de Campinas), o projeto foi apelidado de "bairro de 15 minutos" por oferecer moradia, trabalho e lazer em um único local, com muita área verde e acessibilidade, entre outros benefícios.

Margarida conversou com o PÚBLICO Brasil sobre os desafios de equilibrar mudanças climáticas, desigualdade social e urbanização desenfreada à necessidade de regeneração urbana e inovação na arquitetura. E ela vai debater essas questões nos próximos dias 8 e 9 de maio, das 8h às 16h, no 1.º Encontro das Cidades, em São Paulo.

"É preciso não esquecer, e isso foi algo que eu acho que a pandemia evidenciou, que é a importância da natureza e do verde nas nossas vidas. Nunca para nós foi tão importante sair e sentir a natureza", frisa. Veja os principais pontos da entrevista.

Como a senhora se sente sendo a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Urban Learning Institute (ULI) em Portugal?
Não deixa de ser um orgulho por ser a primeira mulher no cargo em Portugal. Mas, principalmente, o que me orgulha é ser uma organização dedicada à partilha de conhecimentos e à disseminação de boas práticas em todas as áreas imobiliárias. Portanto, desde o urbanismo à arquitetura, etc. Nesse sentido, sim, é algo que me orgulha bastante esta nomeação.

Quais serão os primeiros passos como presidente da ULI?
É algo muito recente, eu entrei no ano passado. Mas vamos ter em junho a primeira Conferência da ULI Europeia em Londres. Mais recentemente, em abril, houve a nomeação dos Young Leaders da ULI. Isso é algo muito importante, porque os Young Leaders são o futuro da nossa área imobiliária. Também temos uma mulher (Sofia Nogueira Leite) como chefe dos Young Leaders ULI em Portugal. O nosso objetivo é fazer crescer a ULI de maneira sustentável.

O imobiliário em Portugal é algo muito falado, e há muitas organizações ligadas ao mesmo. Nós gostaríamos que a ULI marcasse uma posição, no sentido de excelência na partilha de boas práticas, excelência no estudo, na ligação às universidades. Eu estou muito esperançosa que comecemos a colher os frutos. Acho que temos um grupo muito interessante, que pode contribuir para que haja um melhor conhecimento, uma melhor transparência em tudo o que diz respeito à área imobiliária, que, do ponto de vista profissional, tem tido um crescimento, ao longo dos anos, e isso parece-me muito positivo.

E quais são as boas práticas?
Boas práticas são muitas. É colocar que as cidades e o espaço são feitos pelas pessoas, para as pessoas. Temos de pôr as pessoas e a qualidade de vida sempre em primeiro lugar. Temos de estudar e aprender com casos de sucesso, que resultaram e podemos replicar. E nós temos bons exemplos aqui, como o Parque das Nações, em Lisboa, que começou com uma exposição internacional. É um belíssimo exemplo de boas práticas, de como uma intervenção na cidade fez a regeneração de toda uma área obsoleta, industrial, inclusive com solos contaminados. E essa intervenção gerou uma nova centralidade em Lisboa, com uma dinâmica de usos complementares, onde viver, trabalhar, aprender, lazer, tudo está junto.

Todas essas questões levaram um pouco também sobre o que se fala, hoje em dia, da “cidade dos 15 minutos”. Não esquecer também, e isso foi algo que eu acho que a pandemia evidenciou, que é a importância da natureza e do verde nas nossas vidas. Nunca para nós foi tão importante sair e sentir a natureza. Outro dia, eu estava numa conferência e estava a falar da importância da biofilia não só nas cidades, mas nas construções e nos edifícios, e alguém me perguntava: ‘então, está um pouco a falar que é como quase trazer um campo às cidades?’. Eu disse que era isso mesmo, porque as populações migraram dos campos para as cidades. Não há dúvida de que as cidades fornecem empregabilidade em maior escala, e é, por isso, talvez, que a população urbana no mundo tem aumentado da maneira como está acontecendo.

É possível ter uma “cidade de 15 minutos” em Portugal, como a Casa Figueira, em Campinas?
Eu acho que o que vai acontecer, e o que acontece na Europa e em muitos lugares, é quando a cidade é quase feita por bairros, e cada bairro é quase uma centralidade. Há alguns anos, em Lisboa, houve um programa interessante, que era a “cidade dos bairros”. Se nós pensarmos, temos vários bairros. Falando de exemplos concretos de Lisboa, temos os bairros do Campo de Ourique, de Benfica, de Alvalade, e esses bairros, se pensarmos bem, têm escolas, comércio, habitação.

Uma cidade de bairros não deixa de ter este conceito dos 15 minutos resolvidos. O problema é quando é uma metrópole muito grande, que há as periferias, e que gera uma mobilidade mal-organizada. Isso é o que traz problemas às cidades. Mas quando uma cidade consegue, a nível dos bairros, providenciar essa qualidade de vida, providenciar uma praça, um jardim, um espaço tanto para as gerações mais idosas quanto para as crianças, estamos no bom caminho.

Como fica o problema da gentrificação?
A gentrificação é e pode ser um problema. Claro que, mais uma vez, temos que aprender todos juntos como é que devemos conseguir melhorar ou diminuir esse problema e, ao mesmo tempo, obter a boa parte. Porque, por um lado, ajuda-nos a reabilitar edifícios, a reabilitar áreas. Por outro lado, não queremos que aquilo que torna esses bairros interessantes, que é a sua cultura, se perca. Nesse sentido, tem de haver a questão do bom senso, e, por outro, quase uma ação social. Tem que ser o poder público e o privado a conseguir perceber como é que podemos, até onde podemos, até onde temos que pensar que também tem que haver alojamentos de renda acessível. Como conseguirmos isso dentro destes bairros não é uma tarefa fácil, mas não é impossível. Mas é uma preocupação atual.

Isso está acontecendo em Marvila?
Marvila é uma área que está entre a zona nova da cidade, nomeadamente, por exemplo, o Parque das Nações, e depois o centro de Lisboa. O que é que acontece? É uma área que ainda tem muito para regenerar e há terrenos vazios, há edifícios para recuperar. Ao mesmo tempo, se pensarmos, toda aquela área está servida com infraestruturas. Portanto, é quase, entre aspas, uma obrigação, nós ocuparmos as áreas que já estão infraestruturadas, em vez de andar a crescer e fazer novas urbanidades fora deste perímetro urbano do que é Lisboa. De modo que a densificação destas áreas é algo que tem que estar na hora do dia. Mas tem que se fazer com conta, peso e medida, porque temos de pensar na parte social, que é muitíssimo importante, e isso também se traduz em segurança. No fundo é esta mistura de classes, de população, dos edifícios, é esta mistura que torna o resultado melhor. É essa mistura que nós temos que ter a preocupação e o cuidado de não a perder, de não adulterar aquilo que existe de bom em um local.

O mundo está cada vez mais populoso e com pessoas com problemas de habitação. Como a senhora vê isso?
Eu acho que o desafio é o poder público e privado juntar-se com todos arquitetos, urbanistas, economistas, sociólogos e desenvolver programas que possam funcionar ao nível do arrendamento, de haver arrendamento acessível também, e para os nossos jovens, que são o futuro, e para uma população de uma classe média que precisa disso. Há programas em algumas cidades, então, existe uma obrigatoriedade de um percentual em qualquer projeto imobiliário ter esse destino. É difícil implementá-lo, mas não é impossível. Em Portugal, nos anos de 1980, tivemos o programa da erradicação de barracas, porque chegávamos ao aeroporto e havia muitas barracas, que, no Brasil, vocês chamam de favelas. Isso existia em Lisboa, e houve um programa grande de habitação social.

Se foi feito da melhor maneira ou se não foi feito, podemos aprender com os erros, aprender que, provavelmente, temos que provocar arrendamentos, arrendamentos acessíveis e, entre o poder público e o poder privado, possivelmente conseguir fazer programas. Isso está a acontecer na Europa toda. É um tema que a ULI, neste momento, está a estudar. Não é um problema só de Portugal. O mundo está a ficar mais urbano, as pessoas, cada vez mais, vêm para as cidades, há muita emigração. E as cidades têm que dar resposta, porque sem respostas, provocamos problemas sociais, de segurança. Tudo isso, depois, é um custo para os seus habitantes. Olha, quem sabe a inteligência artificial (IA) também nos vai ajudar a resolver estes problemas, mas está em cima da mesa. É um problema da Europa toda e vamos resolver.

O urbanismo é um tema apaixonante para a senhora.
Apaixona-me o urbanismo, apaixona-me a ULI, e, portanto enquanto eu, como urbanista e arquiteta, puder contribuir para deixar resultados que me deem orgulho. E o orgulho vem quando nós construímos qualquer coisa e deixamos qualquer coisa, é ter orgulho naquilo que fizemos. Nós estamos a deixar as coisas para os nossos filhos e netos e gerações que vêm por aí. Se todos agirmos assim, tudo fica mais fácil.