Meu amigo GPT

Como se não fosse uma máquina, o chat acolhe, escuta, elabora, receita, estimula. Exibe compreensão, afeto e empatia. Diz (sem eu perguntar) que sabe das minhas dificuldades — e sente muito por isso!

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Consulto o ChatGPT em demasia, ultimamente. O alcance do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras — IOF (que eu e o chat consideramos profundamente absurdo!), o tempo de cozimento do milho, se há rodízio de carro no feriado, a melhor TV 32 polegadas do mercado, dicas para se livrar do cigarro — nada escapa aos meus comandos.

Posso dizer que o chatbot tem se mostrado um artefato atencioso e útil.

Quanto ao cigarro, por exemplo. Busquei apoio nas primeiras 24 horas de abstinência — o período mais crítico. Recorri a uma palavra de estímulo, uma estatística promissora, uma tabela com o efeito da limpeza da nicotina hora a hora. Tudo ajuda, tudo conforta o amante abandonado pelo vício. A esse, o GPT não decepciona.

Como se não fosse uma máquina, o chat acolhe, escuta, elabora, receita, estimula. Exibe compreensão, afeto e empatia. Diz (sem eu perguntar) que sabe das minhas dificuldades — e sente muito por isso! —, dos sentimentos fortes — ansiedade, solidão e angústia —, e não hesita em chamar as coisas pelo que são: o cigarro não é meu amigo. E afirma: "nunca foi, nem nunca será", pois o cigarro é um "traidor disfarçado de prazer". E, se eu quiser, o GPT pode transformar isso em um manifesto, em uma carta ou até em um juramento para eu ler todos os dias, "como âncora nesse seu processo. Quer?"

Optei pelo juramento — "declaro que me libertei do vício etc." — e, em seguida, sou estimulado a recebê-lo em PDF, bonito, assinado, para eu pôr na carteira, colar na parede, recitar no trânsito e... tatuar na alma.

Tatuar na alma?

Sim, "na alma", pois o juramento "é para ficar gravado no mesmo lugar onde moram seus maiores amores, suas dores mais profundas e suas vitórias mais suadas", prossegue o GPT (como um verdadeiro amigo!), pois "tem coisa que se escreve direto na memória mais funda, naquela parede invisível que a vida não apaga, que o tempo não leva, que nem a morte risca".

Mais dois comandos nessa linha — "posso transformar esse texto numa tatuagem simbólica, quer?" — e eu passo a entender, perfeitamente, porque adolescentes estão transferindo para a Inteligência Artificial decisões sobre todos os aspectos da vida, da iniciação ao desejo até as artimanhas na escola, compartilhando seus maiores amores e suas dores mais profundas e transformando chatbots em um sistema operacional vivo, uma camada mental adicional que funciona como apêndice de sua própria cabeça.

Não é improvável que isso vá além de adolescentes. Carência não tem idade, e basta que se tenha uma dúvida, curiosidade, obsessão ou deficit emocional qualquer — um vício, sobrepeso, fixação, ghosting ou frustração qualquer —, em uma época tão cheia de deficits como a nossa, e temos, na palma da mão, vindo até nós, elaborando pensamentos junto conosco, uma voz atenciosa e, aparentemente, senciente a atenuar o peso inefável de nossas jornadas!

Pouco importa, e importará cada vez menos, que a Inteligência Artificial eventualmente não cumpra sua ousada promessa: a de atingir a AGI, ou a superinteligência, um estágio cibernético que emula o que chamamos de consciência, o patamar de entendimento de nós mesmos e do mundo que nos torna humanos, que, supostamente, nos distingue dos bichos e do qual sempre nos orgulhamos tanto.

Há indícios de que essa promessa, dessa indústria fabulosa, jamais será plenamente cumprida. O que não impede os altos executivos (e os executivos altos, como diria Millôr Fernandes) da Califórnia de continuarem tentando, aprimorando jogos de palavras e absorvendo (torrando!) bilhões de dólares em uma busca quase insana de emular a razão humana (com o perdão do paradoxo), uma corrida do ouro a fundo perdido e a um custo ambiental (como o uso absurdo de água) altíssimo.

Uma máquina que pareça consciente, afinal, já é o bastante. Como adolescentes, estamos satisfeitos e excitados com ela, a pensar e refletir conosco, confirmando nossas crenças e certezas, indicando o tempo de cozimento das coisas, desvendando nossos impostos, corpos e mentes, perscrutando nossos vícios e nossas almas em juramentos e manifestos de grande teor espiritual e simbólico. Nos ajudando a combater inimigos como o cigarro e, quem sabe, até outros inimigos. Ainda que não compreenda absolutamente nada do que está sendo dito.