“Estou preparado para ser devorado fisicamente, mas jamais moralmente”

Escravizar o povo indígena não foi tarefa possível na chegada dos vendilhões portugueses de gente e de ouro às terras de Santa Cruz.

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A frase que abre este artigo, relatada por um guerreiro tupinambá no livro O Povo Brasileiro, do historiador, sociólogo e educador Darcy Ribeiro, talvez explique, em parte, a diminuta presença de povos originários no Brasil.

Mas escravizar o povo indígena não foi tarefa possível na chegada dos vendilhões portugueses de gente e de ouro às terras de Santa Cruz.

Restou aos portugueses que lá chegaram ingressar em uma guerra biológica, uma vez que, pela falta de anticorpos, os índios caiam feito folhas secas ao contacto com quaisquer doenças de homem branco trazidas no convés das caravelas.

Há relatos de uma tribo dos tamoios no Leblon, no Rio de Janeiro, que foi dizimada após esses portugueses de "raça pura" (árabes ibéricos) jogarem roupas no Jardim de Allah infectadas com varíola.

Ainda em O Povo Brasileiro, um indígena pergunta a um português: "Por que estão levando tantos corpos de Pau-Brasil para dentro da caravela? Vocês precisam assim de tanta lenha lá onde vivem?" A resposta: "Não levamos para usar como lenha, mas para vender, pois, assim, ganhamos dinheiro para comprar terras e casas".

O indígena insiste: "E para quem ficam essas terras quando morrerem?" O português devolve: "Para nossos filhos". O indígena, então, arremata: "Já o nosso povo sabe que a terra que nos nutriu também nutrirá nossos filhos".

Hoje, ao olhar e sentir o mar da Praia do Cordeirinho, em Maricá (RJ), na Casa Darcy, pensei que a cultura indígena, ao contrário das tribos indígenas no litoral brasileiro, jamais deixou de existir na alma do povo brasileiro.

Aqui, nesta mesma areia, de onde, mais tarde, vieram outros portugueses a trazer nosso povo africano em caravelas-tumbas — ou como escreveu e escriturou Aldir Blanc: "Há muito tempo, nas águas da Guanabara, o dragão do mar reapareceu" —, também desembarcaram esses versos hoje, abraçados com música pela colaboração dos meus parceiros Kiko Horta e Moacyr Luz.

O Povo Brasileiro
(Kiko Horta/ Pierre Aderne/ Moacyr Luz)

O povo brasileiro
a Praia do Cordeirinho
no sol eu fui mineiro
na lua planta-espinho

Na aldeia Tekoa
fui Tamoio, Yoruba
escrevi minha nação
no português de cá

Latino-americano
estatura mediana
também fui africano
minha mãe era cigana

Eu sou a nova Roma
o aroma da romã
de ouro meu idioma
o povo do amanhã

Das ocas de onde moro
Há África no mar
Só rio quando choro
navego só de olhar

Meus fracassos, meus troféus
não queria ser quem me venceu
cruzeiro no céu
Nha terra nha cresceu

Iguanas tons de pedra
Palmeiras dos sagüis
O vento das florestas
Princesa dos oitis
Nasceu Vila Isabel
Enredo de zumbi
Cipós que dão no céu
…Brasil de
sapucaís.