Comida no fim do mundo

Se todas as fronteiras ruíssem e todas as regras caíssem, a comida permaneceria como elo entre nós e a memória de quem somos.

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Se amanhã todas as luzes se apagassem e as últimas fronteiras caíssem, o que sobraria para alimentar a humanidade? Não estamos falando do supermercado cheio, mas do exato momento em que as prateleiras estiverem vazias e o silêncio dominando as ruas. O cheiro de terra molhada poderia tornar-se tão familiar quanto o cheiro de pão recém-assado, e a fome poderia transformar até uma simples batata no mais valioso dos banquetes.

No fim do mundo, não são as receitas exóticas ou as iguarias caras que sustentam a vida, mas a capacidade de improvisar com o que sobrou. Os grãos guardados por uma avó precavida, as raízes esquecidas num canto escuro da despensa, uma maçã amassada no fundo da mochila — cada ingrediente ganharia uma importância sagrada. O arroz simples poderia transformar-se no prato mais rico, as últimas gotas de azeite ganhariam destaque num refogado improvisado.

Em tempos tão extremos, cozinhar não poderia ser mais só técnica ou ciência. Seria uma prova de humanidade e resiliência. Não mais para agradar paladares exigentes, mas para oferecer calor e esperança a quem sobrevivesse. O fogo tornar-se-ia altar e fogão, as panelas seriam relíquias e as facas, as últimas defensoras contra o caos. Não existiriam mais receitas perfeitas, mas gestos inventivos para tornar menos amargo o dia seguinte.

As carnes frescas dariam lugar às conservas e às caças improvisadas. Os legumes cultivados às pressas num canto de terra seriam tão valiosos quanto pedras preciosas, e uma simples sopa de raízes poderia representar a linha tênue entre a vida e a morte. Os temperos perderiam o status de detalhe para tornar-se memória viva de uma época antiga, e cada aroma resgataria uma humanidade tão frágil quanto necessária.

A comida no fim do mundo não teria luxo, mas não lhe faltaria magia. Não teria nomes complicados, mas ganharia uma importância espiritual. Não impressionaria por técnica ou apresentação, mas por representar solidariedade e abrigo. O prato servido ao redor de uma fogueira improvisada poderia não ter beleza, mas teria amor e gratidão.

Se todas as fronteiras ruíssem e todas as regras caíssem, a comida permaneceria como elo entre nós e a memória de quem somos. Porque, no limite entre sobreviver e viver, o simples ato de alimentar outro ser humano torna-se a prova mais clara de que não estamos derrotados.

No fim do mundo, a receita não é mais uma receita: é uma promessa, uma prece e uma reafirmação de humanidade. Porque enquanto houver uma brasa acesa e uma panela por perto, enquanto existir uma única mão para oferecer e outra para receber, não estamos perdidos.